Slhueta de costas, mostrando longas pernas, calçando sapatos de salto, ao lado de uma placa onde se lê "Mar Doce Lar"

2003

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Ou: E se eu tivesse sido puta?¹

Close do tronco e pernas de mulher, trabalhadora sexual, de vestido curto vermelho, usando sandálias de salto. Está encostada em um poste de luz e segura um cigarro entre os dedos, na mão apoiada na perna em primeiro plano.
Foto encontrada em vários sites da web. Não consgui encontrar proprietário/licença aplicável.

Quando olho para trás, para minha história de vida, o ano de 2003 destaca-se como uma encruzilhada.

Em todos os momentos, fazendo nossa escolhas, vamos definindo novos caminhos para nossas vidas, mas aquele ano foi carregado de possibilidades de viradas.

Muito embora desde criança eu já soubesse — mesmo que não verbalizasse publicamente — que não era “homem”, como me designaram ao nascer, foi nesta época que tomei a decisão de iniciar uma transição. Fiz as pesquisas, perguntei em grupos e principiei a tomar hormônios.

Aquele ano foi talvez o meu período mais introvertido e mais solitário. Morava só, apenas saía para trabalhar e voltava. Tinha pouco convívio social fora da socialização virtual na internet. Neste momento, vivi o que pode ser chamado de momento crisálida: meu corpo mudava, mas eu saía para os eventos sociais e de trabalho fazendo “CISplay² (fingia ser menino hetero e me vestia como tal), mas em casa e algumas vezes no entorno, usava roupas mais representativas do que entendia ser meu gênero. Mesmo no CISplay, algumas peças “femininas” eu usava, como um modo de diminuir a tensão interior do comportamento simulado.

Que fique claro: eu cresci — criança e adolescente antes da internet — entendendo que era trans, por não me entender como menino/homem. Mas a única narrativa conhecida e contemporânea em que podia me enquadrar era a de mulher transexual.

Mesmo que tivesse interesse em mulheres...

Algumas poucas pessoas partilhavam de minha intimidade, sabiam de mim e até me viram em casa, sem disfarces. Mesmo assim, o mote da época era a reclusão e solidão.

Neste contexto, nasceu uma persona feminina online que eventualmente atraiu aquela categoria de pessoas chamadas de “T-Lovers” (usualmente homens cisgêneros³ formalmente heterossexuais que tem desejo sexual por travestis e mulheres trans, com genitais intocados). E embora eu tenha conseguido enxergar e escapar das armadilhas deles, eu tinha minhas vulnerabilidades, financeiras e emocionais. E aí surgiu o “Daddy”, um sujeito mais velho, com aparente boa situação financeira e boa lábia.

Vinha ele com aquele rol de promessas: montar apartamento, bancar transição, vestuário, até cirurgias (menos genital, claro). A minha contrapartida seria sexo, claro. Embora na ocasião tenha sido muito tentador (eu já tinha experimentado sexo com homens, e não seria um problema intransponível, pensava), consegui antes de me envolver em qualquer coisa mais complicada, ter a sacada — mesmo sem conversar com ninguém — que se eu aceitasse, eventualmente iriam aparecer as propostas de fazer sexo com amigos do Daddy e que de alguma forma, em algum momento ele iria sair de cena e me deixar em situação de prostituição. De fato, a proposta em si já era um convite ao trabalho sexual!

Eu já acreditava que prostituição é atividade tão válida quanto qualquer outra, e ainda creio. Mas também já achava que nenhuma ocupação é digna se escolhida por carência ou por falta de outra opção.

Sobrevivi a 2003, tomando hormônios à partir daí e até 2008. No ano seguinte iniciei um relacionamento — inclusive coabitando — durante o qual tive o insight de que não era exatamente uma travesti ou mulher trans de narrativa tradicional/médica e dei uma freada na transição, parando com os hormônios e voltando ao CISplay quase full time, durante muitos anos, até 2012 quando entendi ser pessoa trans não binária.

E o resto é (minha) História.
Mas podia ter sido diferente.

Se tivesse cedido ao assédio, teria sido eu uma travesti e prostituta (ou como diz Indianare Siqueira: “Uma Puta Travesti”) nos meus 30's?
E como estaria hoje em dia?
Teria feito a mesma escolha de estudar e fazer concursos públicos, paralelamente em atender aos clientes?
Ainda seria puta?
Seria uma puta ativista?
Teria sobrevivido?

São perguntas que ficarão sem resposta, mas provavelmente minha vida teria sido um tanto diferente…


¹ O subtítulo é uma referência e homenagem ao título do livro da amiga Amara Moira, “E se eu fosse puta”. Não leu? Corre lá e compre! Não vai se arrepender. 
² CISPlay é uma corruptela de cosplay e significa literalmente “fazer o papel de pessoa cisgênera”. Ou seja agir como a sociedade espera, ao presumir seu gênero, e de acordo com o gênero designado ao nascer.
³ Cisgênero é como se define a pessoa cuja identidade de gênero é a mesma do seu gênero designado ao nascer (ou no pré-natal). O prefixo “cis” significa “do mesmo lado”, em oposição ao prefixo “trans” que significa “além de”.

(N.A.: Texto editado e revisado em 18/10/2023.)