Batman é apenas um homem cis branco rico que bate em pobres?
E seria melhor usar seu dinheiro para "resolver" Gotham?
O título acima traz dois questionamentos muito comuns nas redes sociais, acerca deste personagem primeiro publicado nos EUA em 1939, na revista Detective Comics.
Se você for considerar as primeiras histórias, apenas - que a maioria das pessoas provavelmente nunca leu - e desconsiderando o momento histórico, a resposta pode muito bem ser sim, para ambos os questionamentos.
Mas, 83 anos de histórias publicadas, que inspiraram os seriados, animações e filmes pelo qual o personagem é mais conhecido pelo grande público (e que é a base das questões), tornam as respostas menos óbvias…
Primeiro, um aviso necessário: sou uma pessoa extremamente crítica do papel social hegemônico de homens brancos cishetero, e mais ainda de pessoas ricas em geral. Ou seja, a análise a seguir não passa panos.
Segundo e talvez mais importante: Batman/Bruce Wayne não é uma pessoa, e sim um personagem ficcional que deve ser analisado como tal. Ele não pode ser “encaixado” neste ou naquele transtorno emocional ou psiquiátrico, por não ser uma pessoa. Da mesma forma que seu nêmesis, o Coringa também não. O mundo em que eles vivem, não é o nosso, embora Gotham possa ser considerada como tendo uma versão piorada dos problemas sociais e políticos das nossas metrópoles (em alguns casos, como quanto à corrupção, a representação é bem realista).
E como personagens de ficção em um mundo de ficção, temos que ter um mínimo de suspensão de descrença, não é mesmo?
Qual seria, me pergunto, o valor de entretenimento de Bruce Wayne, o ex-bilionário que doou toda a sua fortuna e foi trabalhar em um escritório com um salário que mal paga suas contas e que dirá, terapia (o que aliás, Bruce faz, nas HQs)?
Voltando ao realismo da corrupção em Gotham, aproveito para tocar na segunda questão: “Bruce Wayne não faria melhor, doando sua fortuna para o bem estar de Gotham em vez de usá-la para os equipamentos de suas atividades como Batman?”
Em vários momentos, nas publicações de Batman em quadrinhos, de forma orgânica (mas destaco a série de HQs Batman: Cavaleiro Branco - Editora Panini), já trataram deste tema, assim como no terceiro filme da trilogia de Christopher Nolan, O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Em resumo, desde o fim dos anos 1960, existe a Fundação Wayne através da qual, Bruce atua para o bem estar das classes menos favorecidas em sua cidade. E inúmeras vezes, foi retratado como a corrupção endêmica de Gotham, inclusive envolvendo a classe mais alta e dominante, impedem que esses recursos efetivamente contribuam para a resolução dos problemas sociais de Gotham.
Ou seja, em minha opinião, o personagem Bruce Wayne, faz bem em não doar toda a sua fortuna, em seu mundo fictício.
“Ah, mas Batman é sim, um homem branco rico que bate em pobre!”
Será?
Você tem certeza de que pode denominar pobres - no sentido de pessoa sem emprego (ou apenas com oportunidade de empregos de baixa renda), sem oportunidades, em situação de vulnerabilidade - os vilões de Gotham?
A maioria deles tem formação superior - não faltam médicos, psiquiatras, professores e doutores - e acesso a recursos que os desqualificam completamente como “pobres”. Os momentos ocasionais em que vemos o homem morcego em embate físico com pessoas que assim poderiam ser qualificadas (os membros das gangues dos grandes vilões, principalmente), ao contrário de inúmeros policiais do mundo real, ele efetivamente utiliza apenas a “força necessária”. As exceções usualmente ocorrem em momentos específicos em que a narrativa deve mostrar um momento de descontrole - seja porque a história se passa em início de sua carreira ou por estar fora de si, por algum motivo.
Então, ainda na minha opinião - e à luz das narrativas das últimas oito décadas, não, o personagem Batman não é só um homem branco rico que bate em pobre.
Ele, assim como a bat-família (sendo minhas preferidas: Batwoman, as Batgirls, Mulher-Gato e Arlequina - estas últimas da família estendida) são o que são: personagens, com muitas complexidades, que podem ser usados para ilustrar necessidades e comportamentos humanos - no âmbito da ficção, com a suspensão de descrença necessária - mas que não podem ser confundidos com pessoas, cujas complexidades e responsabilidades sociais são incomparáveis as aventuras de personagens da indústria de entretenimento.
Mas cá entre nós: se houvesse um bilionário com recursos e treinamento comparáveis aos do personagem Batman, ele provavelmente seria um vilão e não alguém como o Bruce Wayne da ficção.
É mais fácil nosso Mundo Real™ produzir The Boys do que a Liga da Justiça…