Slhueta de costas, mostrando longas pernas, calçando sapatos de salto, ao lado de uma placa onde se lê "Mar Doce Lar"

(Des)Complicando a Tia #2

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Pessoa não binária transfeminina X Mulher não binária

“Mar, dia desses vi um vídeo de Bryanna Nasck, onde ela se definiu como mulher não binária… Qual a diferença disso pra pessoa não binária transfeminina?”

Sua pergunta é ótima, como sempre, padawan… Mas não é de simples resposta. Eu e Bryanna conversamos sobre isso, há pouco tempo, aliás. Enfim, tenha um pouco de paciência, que a Tia explica

As identidades não binárias formam não apenas um, mas vários espectros. Uma pessoa não binária pode existir entre os dois gêneros normatizados, em uma interseção entre eles, entre um deles e algum gênero não padrão, ou até completamente fora.

E mesmo assim, como não vivemos em um vácuo cultural, social, conceitual e linguístico, sempre teremos traços de expressão e comportamento associados a algum dos gêneros que nossa sociedade reconhece “oficialmente”: Masculino ou Feminino.

Nossas identidades, como as de todas as pessoas no mundo são experiências de vivência interior. O que mostramos ao mundo, é tão somente, expressão.

Quando pessoas não binárias pensam sobre suas vivências internas de seus gêneros, pensamos em termos do contexto em que nascemos e vivemos, e na forma como nos sentimos. São dois polos distintos: um contexto que pode ser expresso em palavras e outro puramente emocional.

E assim, como as pessoas são diferentes, acabam surgindo várias (auto)descrições para as vivências da não binaridade. Muitas vezes, existirão duas ou mais descrições, que semanticamente serão muito similares — para muitos, equivalentes totais — mas por causa de imponderáveis cargas emocionais, existem de forma separada.

E aqui chegamos à sua pergunta, padawan

Quando eu digo que sou uma pessoa não binária transfeminina e Bry diz que é uma mulher não binária, estamos comunicando que ambas somos pessoas não binárias, e que de algumas formas, ambas nos conectamos e identificamos com o que nossa sociedade chama de mulheridades, de feminino, em nossos íntimos.

Ao mesmo tempo, ao usarmos termos diversos, expomos também a importância de certas partes de nossas identidades.

Para mim, “não binária” é emocionalmente mais central em quem eu sou, e “transfeminina” é um adjetivo que qualifica minha não binaridade. Para Bry, é lícito dizer que a “mulheridade” em sua identidade é mais central — mas lógico, ela poderá dizer melhor.

E isso tudo, nesse sentido, não faz dela menos não binária, ou de mim, menos mulher.

“Tia, entendi tudo! Seriam sinônimos, não fosse a carga emocional individual das vivências internas…”

Exatamente, padawan… E aproveitando, compare nossas expressões de gênero, nossos estilos públicos…

“Hummm… Bryanna é bem barbiezinha e você é mais tomboy, bofinha, Mar.”

Ou caminhoneira mesmo, algumas vezes, padawan… 😊

Mas atente que em algumas situações, eu posso ser mais femme, enquanto Bry — alerta de informações defasadas — por vezes pode ser bem bofinha… E essas expressões nada tem a ver com nossos gêneros autopercebidos e autodeclarados.

Infelizmente, ser bofinha ou caminhoneira, para uma pessoa transfeminina (não binária ou mulher trans) é, por conta dos estereótipos de gênero, prato cheio para quem quer nos deslegitimar.

Além de dificultar em outros sentidos, se sua atração principal for por mulheres (como a minha).

“Nossa, é verdade, Mar… Sinto muito.”

Vamos vivendo, sobrevivendo, desconstruindo e reconstruindo esses conceitos, padawan

Esse texto foi inspirado em minhas próprias vivências e minhas pesquisas na web gringa, desde quando comecei a me entender não binária.

Além disso, o citado vídeo, e a conversa com Bryanna Nasck, que manifestou interesse em ler meus pensamentos sobre nossas autodefinições foram decisivos para a produção destas linhas.

Bryanna, depois de ler o rascunho deste texto, fez alguns comentários, um dos quais cito, para ilustrar também uma questão de comunicação:

“(Uso) ‘mulher’ como uma forma de identificar diretamente para as massas como, dentro do nosso contexto social, devo ser tratada. E o ‘não binária’ permite discutir mais profundamente sobre gênero e as infinitas formas de ser.”