Slhueta de costas, mostrando longas pernas, calçando sapatos de salto, ao lado de uma placa onde se lê "Mar Doce Lar"

Disforia (sem Gênero): Uma visão pessoal

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Pessoa se olhando no espelho, usando camisa preta, calça jeans azul e tênis. O reflexo no espelho está usando blusa preta, minissaia preta e sapatilhas.
Pessoa se olhando no espelho, usando blusa preta, minissaia preta e sapatilhas. O reflexo está usando camisa preta, calça jeans azul e tênis.

“Disforia de Gênero” é um termo da Medicina. Como tal, foi definido por quem não sofre com isso e destinado à patologização desse sentimento. Não pretendo entrar nesse mérito, pois outras pessoas já discorreram sobre isso. Basta dizer que, em sua forma mais comum, é no mínimo uma sensação de “desconexão” entre o corpo de uma pessoa e sua identidade pessoal. É uma sensação, no caso das pessoas trans que vem de cedo na vida, muitas vezes no começo da puberdade (por vezes ainda antes), precedida de uma expectativa de que seu corpo irá ficar de um jeito — que conforma com sua identidade pessoal.

Disforia para uma pessoa trans binária deve ser mais fácil de entender para pessoas cisgêneras, creio: se a identidade da pessoa é com um gênero mas seu corpo é lido por todos, e inclusive por ela, como de gênero oposto, vem o impacto da disforia. Isso se estende, também, embora seja talvez menos perceptível para as pessoas cis, aos papéis sociais e as expectativas a estes atreladas.

No caso das pessoas trans não binárias, não há propriamente “gênero oposto”. Existe o gênero socialmente imposto e baseado em conceitos predefinidos em relação a genitais/genética/fenótipo com seus papéis sociais associados, e a leitura que os outros tem daquelas pessoas trans. Dessa forma, nossa Disforia de Gênero (ou a minha, mais propriamente) vem muito da discordância entre a identidade pessoal, que pode ainda estar se (des)construindo, e os papéis e expectativas sociais relativas ao gênero em que a pessoa está sendo enquadrada.

Além disso, também pode haver maior ou menor sensação de discordância com o próprio corpo (Disforia de Corpo — não confundir com dismorfia). Esta sensação pode ser “setorial”, ou seja, apenas relativa à certas partes do corpo e apresentação (pernas, mais ou menos pelos corporais, existência ou não de seios, etc) e se estender ao estilo de apresentação e vestuário. E todas essas sensações podem variar no tempo.

“Partes do corpo”? “Estilo de apresentação e vestuário”? “Variar no tempo”?

É.

Se você não tem identificação com o binário de gênero normatizado (Homem/Mulher como únicas opções de gênero), ou tem com ambos, em graus diferentes ou em momentos diferentes, ou em fluxo, há que se entender que tudo o que é esperado do/s polos do binário possa ser questionado/identificado/ressentido de formas diferentes em momentos diferentes por pessoas diversas. Inclusive a corporalidade.

No meu caso, sinto uma sensação de estranheza (as vezes muito intensa e incômoda) com os papéis sociais do binário, em geral. Me identifico pouco com o gênero que me foi imposto ao nascer e no qual socialmente me leem, embora também não me sinta pertencente ao outro membro do binário. Mas, tenho em dados momentos e situações, no máximo, uma identificação parcial com qualquer dos gêneros binários em termos de papéis sociais e corporalidade normativas. Vem daí, a maior parte das minhas experiências de desconforto disfórico: o confronto social com as expectativas — tanto minhas quanto do outro — quanto aos papéis e experiências do gênero com o qual estou mais (ou menos, ao contrário) me identificando em um dado momento/contexto e meu gênero de leitura/imposição. Falando de imposição, algo que me incomoda — principalmente de estranhos ou pouco conhecidos — é a imposição dos pronomes/artigos do meu gênero designado quando associado aos papéis de gênero relacionados a ele, especialmente. Não me incomoda o uso dos pronomes/artigos do outro gênero, entretanto. Mas procuro usar no geral e ao me auto referir (e me sinto mais confortável), o discurso neutro e a linguagem não binária ou neutra.

Quanto às expressões ou performances de gênero, no dia a dia tenho muito mais estabilidade (menos fluidez) quanto ao que me identifico ou rejeito. Talvez por conta disso, sinta menos incômodo, desde que me entendi pessoa trans não binária.

Quanto a corporalidade, sinto certo incômodo em situações bem definidas, mas não me causa mais sofrimento — curiosamente, era o que mais me incomodava, antes, quando ainda me via como pessoa trans binária, desde tenra idade até há alguns anos — e entendo que essa evolução de minha disforia de corpo é calcada na minha história e descobertas pessoais, desde pessoinha pequena.

OBS.: Este texto é uma atualização, revitalização de um post e uma coluna publicadas em maio de 2014 em meu então blog pessoal e depois em junho de 2014 no extinto Portal #MeRepresenta, onde colaborei como colunista.

N.A.: Editado e reformulado em 18/10/2023