Não binária e #sapatrans, como assim? #2
No Dia da Visibilidade Trans 2018, enquanto esperava a publicação do artigo que partilha nome com este aqui na Subjetiva, li um texto de Raíssa Éris Grimm, que achei fantástico! O texto dela, em vários momentos, dialoga com o meu, e imediatamente percebi que iria escrever mais.
Os meus caminhos e os de Raíssa se cruzaram em redes sociais há alguns anos, mas apenas agora estabelecemos algum contato. Confesso minha condição de fã dos textos dela. O texto em questão, publicado no Medium é ¨Resistências sapatrans: notas sobre visibilidade trans lésbica¨. Recomendo lê-lo, antes de continuar, assim como o meu anterior, claro:
Voltaram? Então sigamos…
Meu texto, como usual, é primeiro didático e termina com vivência pessoal, enquanto o de Raíssa é mais focado na sua vivência, embora muito didático. Falamos das mesmas coisas, de identidades, de ressignificar conceitos, de ocupar espaços. Mas minhas posições surgem cautelosas, por conta de minhas próprias vivências.
Dois momentos nestas vivências destacam-se, em tudo o que moldou essa minha posição.
Minha construção como pessoa não binária partiu de um entendimento ainda infantil de que eu não era um “menino” — e como estamos falando de alguém que teve sua infância nos anos 1970, por mais nerd que eu fosse (e eu era bastante), não tinha como saber nada sobre não binaridade de gênero, ninguém sabia. Mas lá pelo começo dos anos 1980 eu já sabia o que era uma mulher trans, e assim me identificava. Embora essencialmente tenha ficado no armário, tentando me enquadrar nos papéis designados da melhor forma possível — sem total sucesso, mas com muito sofrimento interior.
Não foi antes da faixa dos trinta anos que fiz algum movimento de transição, já falei um pouco desta época em outros textos, e eventualmente pretendo escrever bem mais. Basta dizer que sentia que algo estava errado, eu não conseguia me encaixar na narrativa de mulher trans e nem de travesti. Por isso, além de outros motivos, parei o processo de transição, voltei atrás e direto para o casulo.
Mas meus afetos, esses sempre foram muito centrados em mulheres (cis, trans). E nessa época — primeira metade dos anos 2000 — eu me considerava trans lésbica.
Demoraram vários anos até eu começar a descobrir e entender mais minha identidade não binária. Enquanto tentava me definir, começava a exercer e construir minha identidade em ambientes de acolhimento, mas principalmente online, inclusive sofri um ataque transfóbico. E digo ataque porque foi ato coordenado de várias pessoas cisativistas, como diz Daniela Andrade, em postagens e comentários. Este perfil do Facebook, que eu tinha desde 2006, foi encerrado em meados de 2015. Não estava com estrutura para passar por isso. Este foi um fato que hoje me inspira cautelas, de ordem muito emocional.
Outro momento me inspira cautela por motivo puramente intelectual. Ainda na minha transição no início da década de 2000, que também foi um momento de crescimento da internet, várias vezes vi homens hétero cisgêneros, jocosamente dizendo que eram “lésbicas presas em corpos de homens”, algo a se repudiar, claro.
Mas essas falas me inspiram os cuidados ao me posicionar quanto à lesbiandade, afinal, em 90% do tempo, a leitura social que fazem de mim é de “homem”.
Nas “regiões” anglófonas das redes sociais é comum — mas não indisputado — pessoas não binárias que amam mulheres (NBLW — Non Binary person Loving Women) e se alinham com mulheridades (como eu, mas uso o termo transfeminina para indicar este alinhamento, conforme expliquei no artigo anterior) reivindiquem a lesbiandade.
Mas por aqui, no País das Maravilhas, onde as pessoas trans e as não binárias ainda não estão dialogando muito — talvez porque nós, pessoas não binárias, não estejamos sequer dialogando entre nós, e com essa intolerância em alto grau na sociedade em geral, ainda há um longo caminho de (des)construção para chegarmos a este ponto.
Então, sim, deixando por um momento a cautela (como fruto do diálogo entre os textos) de lado: sou trans não binária lésbica. Vivenciando a lesbiandade com minhas especificidades e experiências próprias.
Mas por enquanto, ainda prefiro “brincar” e me afirmar através da hashtag #sapatrans.