Slhueta de costas, mostrando longas pernas, calçando sapatos de salto, ao lado de uma placa onde se lê "Mar Doce Lar"

Não Binaridade e Fluidez de Gênero

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Uma vivência dentre muitas outras.

Quando se fala em pessoas não binárias — ou trans não binárias — estamos falando de uma multitude de variações identitárias e de autopercepção e expressão. Porque, se entendemos que gênero (a construção social) não se resume a apenas dois (já que é socialmente construído), podemos entender que exista um espectro de variações entre os dois gêneros normativos.

Tal entendimento, de gênero como espectro, depende de percebermos que os dois gêneros normativos da sociedade/cultura eurocêntrica são definidos como opostos.
Ou mais precisamente: definido o que é próprio do Homem/Masculino, seu oposto será necessariamente Mulher/Feminino.
Mas se são construídos culturalmente, e percebe-se que são, já que há variações nos pacotes Homem e Mulher mesmo dentro da cultura eurocêntrica em países diversos, não haverá vivências no “espaço entre” estes polos?

Claro que há, e além deste espectro e seus polos. Existem pessoas não binárias cuja percepção de si se enquadra de alguma forma, mesmo marginal, em algum desses pólos ou algo entre eles. Outras pessoas não se enquadram em nenhum dos dois polos, nem nos espectro entre eles. Pessoas agêneras (um espectro em si) são um exemplo, não único.

Mas a minha vivência pessoal, é (uma das possíveis) de uma pessoa com fluidez de gênero (“Genderfluid”, em inglês), e é apenas da minha vivência que tenho autoridade total para falar.
Não é o caso de dizer que cada pessoa com fluidez de gênero é totalmente diferente. Cada uma de nós vive seu gênero — e sua fluidez — a seu modo, mas temos o suficiente em comum, para partilharmos esta identidade, “Gênero Fluído”.

E como é isso? Por exemplo:

Com o meme acima, a pessoa tentou mostrar como ela vivencia sua fluidez. É bem ilustrativo, mas não sem problemas, no caso de interpretação.
Podemos entender que ela objetivamente se expressa dessa forma, ou as imagens apenas ilustram as sensações e mudanças dela no espectro de gênero. Porque nada obriga a, ou impede que, a pessoa queira se expressar ou se expresse de acordo como estiver se sentindo em relação a seu gênero.

De um modo geral, é seguro dizer que pessoas de Gênero Fluído tem identificação parcial ou total com algum dos/ambos os gêneros do binário (Homem/Mulher) mas fluem entre eles. Isso pode ocorrer ao longo do tempo, com pessoas ou situações.

Minha vivência pessoal do meu gênero é assim:

  • Não sou homem nem mulher;

  • Mas em alguns momentos me sinto parcialmente homem;

  • Em outro momentos, parcialmente mulher;

  • Na maioria do tempo, não me sinto nada descritível. Me sinto eu;

  • De acordo com as situações, estresse, trabalho, lazer, militância, meu gênero flui — as vezes súbita e rapidamente;

  • Frente a pessoas específicas, muitas vezes, meu gênero varia também. Ou tende a se estabilizar sempre da mesma forma, com aquelas pessoas;

  • De um modo geral, socialmente minha expressão de gênero é “neutra” (abuso do unissex). Mesclo peças de seções diferentes das lojas de roupas, mas de um modo geral, a leitura social que fazem de mim em situações sociais é a mesma escrita no registro civil (salvo situações como as descritas neste outro texto);

  • Mas, tendo a usar fotos que estejam expressando ou tenham leitura de atributos entendidos como pertencentes ao gênero oposto ao que me designaram;

  • Em algumas situações e ocasiões, me sinto à vontade e com vontade de me expressar mais próximo do gênero oposto aquele que me foi designado ao nascer.

Quanto à forma de tratamento, eu particularmente, prefiro — embora lide bem ao usarem “o” ou “a” — que me tratem de forma neutra.
Em Português isso requer malabarismos, bem sei. Mas não é impossível.
Eu tendo a fazer a concordância com “pessoa” o que acaba soando “feminino”. E o exercício de procurar sinônimos e usar formas de voz passiva, não pode ser encarado com algo ruim.

Algumas pessoas não binárias tem tratamentos preferidos — muitas vezes o oposto ao designado, para afastar-se do gênero atribuído. Pensando bem, talvez eu mesma me sinta assim, com a concordância que uso, com “pessoa”…

Pessoas com gênero fluído, até onde percebi, tendem a preferir o tratamento de acordo como se sentem — ou se expressam no momento.
Para mim, muito estressante é tentarem me “enquadrar” nas caixinhas de gêneros, em geral, e na do gênero que me foi designado, em particular.

Como assim enquadramento nas caixinhas? Alguns exemplos genéricos: “Você não pode fazer/usar isso porque você é homem/mulher”; “Você que é homem, carregue esse peso, por favor”; “Você que é mulher, me dá uma opinião sobre essa cor…

Pessoas não binárias com ou sem fluidez de gênero, tem suas vivências e dificuldades próprias, e sofrem opressões particulares.
Temos demandas na sociedade tanto quanto outras pessoas trans (binárias). Muitas destas demandas são comuns, aliás, principalmente: o simples direito de existir e ser reconhecidas como pessoas iguais as demais, e diferentes em suas singularidades.


Nota da Autora: Este texto reflete minhas percepções e vivências de gênero, na época em que foi escrito, que foram se alterando com o passar dos anos. Trata-se, portanto, de um recorte.