Slhueta de costas, mostrando longas pernas, calçando sapatos de salto, ao lado de uma placa onde se lê "Mar Doce Lar"

“Se nasceu com um p(…) e duas b(…), pode até cortar que não muda o que é”

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Sofrendo transfobia no escritório

A frase do título, em si já é suficientemente transfóbica, mas direcionada a você — ou no caso, a mim — é por demais agressiva.

Essa frase, genitalizadora, consegue deslegitimar todas as identidades trans de uma vez.

Não foi a primeira vez que tive alguma colocação transfóbica direcionada a mim, claro. E foi a segunda vez, ambas este ano, em contextos da empresa. Da primeira vez, foi um comentário em resposta a um texto na intranet corporativa, em atenção ao Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de Janeiro). O colega, de outro estado, não apenas ignorou o sentido do artigo, como tentou me enquadrar no gênero presumido/designado, de forma bem direta.

Mas dessa vez, uma pessoa da minha unidade de trabalho, aparentemente irritada, quando corrigi — como faço tantas vezes, inclusive jocosamente, porque o clima no geral é tranquilo — tratamento dispensado a mim, casualmente pelo gênero presumido. Eu disse, simplesmente: “pessoa, por favor”…

…e na sequencia, veio aquela “bela” frase do título. Respondi, mantendo a aparência bem humorada (até pela situação, informal, em área de convivência), mas com olhar firme, que aquilo era transfobia e que ali, seria uma questão ética. A pessoa não se intimidou e veio com a “profunda e bem informada”: “Não confunda sexo com sexualidade”.

Nessa hora, resolvi mudar de assunto, não apenas para não criar clima hostil, mas para não rir na cara da pessoa, porque a coisa começou a ficar ridícula… Recado foi dado, e mais adiante haverá oportunidade de uma ação didática sobre Diversidade na empresa e as questões éticas (e disciplinares) cabíveis.

Por sorte — talvez mais da pessoa agressora — estavam uma amiga muito próxima e outra pessoa que ajudaram naturalmente a mudar o assunto. A boa notícia é que não perdi a calma, nem serviu de gatilho de disforia, embora tenha sido muito incômodo estar na situação, naquele momento.

Como não se sentir mal? Não apenas pelo ataque, desnecessário em qualquer nível, e com um linguajar inapropriado para ambiente de trabalho. A pessoa que fez o comentário no artigo em janeiro ao menos foi elegante na escolha de palavras, embora tão transfóbica quanto...

A semana anterior a esta em que isto aconteceu (este mês, dezembro) foi ótima, recebi demonstrações de reconhecimento e carinho de duas pessoas trans que são por assim dizer, ídolos meus no movimento e na vida, por seus históricos pessoais. E outro reconhecimento, em atividade paralela na empresa. Meu humor estava em alta e também a autoestima…

Mas e se não estivesse? E quando esse tipo de coisa acontece — e acontece muito — com pessoas com a autoestima mais abalada (que convenhamos é o estado mais típico de pessoas trans, principalmente as binárias)? Eu sou uma enorme exceção. Por comparação simples. Tenho várias pessoas cisgêneras amigas, aliadas e acolhedoras; tenho a família que me acolheu, que mesmo não entendendo às vezes e por muito tempo, realmente nunca deixou de me apoiar; ultrapassei a expectativa de vida de pessoas trans (e na época em que ultrapassei, ainda me entendida pessoa trans binária); tenho emprego/atividade formal e salário fora dos “limites e áreas socialmente delimitadas” para pessoas trans, por exemplo.

Imagino, de longe, por meu próprio incômodo, o que sentiriam — e sentem — essas pessoas que não tem meus privilégios, ao ouvir algo assim. Muito triste…

E sabem o que é mais bizarro, voltando ao caso? A pessoa, desinformada e sem noção, continua agindo naturalmente até hoje, como se aquela situação toda fosse “normal”…

Me pergunto se ela ao menos lembra do que aconteceu, se realmente é uma “opinião” — garanto que ela ia chamar assim — tão introjetada e normalizada que mal fica nos níveis de consciência crítica? Será que ela ouviu minha réplica ou caiu em uma fala egóica, reafirmando as crenças que lhes foram dadas?

Aqui cabe um mea culpa: eu já fiz isso nada vida, cair nestas armadilhas e sequer ouvir o que falavam. É uma armadilha difícil de desarmar, compreendo totalmente, mas usualmente somos mais autocríticas em ambientes corporativos, ou deveríamos…

Enfim, dito tudo isso: pessoas cisgêneras, não sejam assim. Respeitem ao coleguinha. Sério, não custa falar “pessoa” em vez de “garoto”, por exemplo, se for pedido…

Revisei algumas vezes este texto, de modo a passar o que eu desejava, minha história e percepções, sem comprometer ou revelar nenhuma identidade das pessoas envolvidas, ou identificar meu local de trabalho.

Isso é muito mais trabalhoso que fugir de marcações de gênero.