Tutela sobre corpos lidos como “femininos”
Algumas reflexões
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, não é apenas sobre os direitos dos homens.
(Mar Gonçalves)
Sempre me pareceu claro, cresci percebendo isso, mas é sempre preciso lembrar: nossas construções binárias de gênero são definidas por oposições, ou seja define-se as características de um gênero e o outro necessariamente será seu oposto. Assim, o gênero “Mulher” ou “Feminino” é dito “frágil”, “submisso”, “passivo” e portanto submetido a tutela do outro, por ser oposto ao gênero 'originário’ (definição arbitrária e politicamente relevante), o “Homem” ou “Masculino”, definido como “forte”, “dominante”, “ativo”.
Por milênios, e até pouco menos de um século (em nossa sociedade), isso significou inclusive, que pessoas mulheres eram negociáveis (pais e até irmãos, debutavam suas filhas e negociavam casamentos por vantagens financeiras e/ou políticas). Hoje em dia, negociar abertamente pessoas é ilegal, imoral e antiético. No entanto continuamos a considerar “normal” o controle social (patriarcal) sobre os corpos de mulher ou corpos percebidos como femininos.
O patriarcado define como os corpos femininos devem se vestir, se comportar, se posicionar. E todo corpo feminino que não siga as regras, está automaticamente no “domínio público”, ou seja totalmente disponível.
(NOTA: Como estes corpos são socialmente controlados no patriarcado, poderia ser dito que eles já estão em “domínio público”. Mas prossigamos pela brevidade e pela sequência narrativa)
No caso, tanto “domínio” quanto “público” refere-se aos homens, principalmente(embora mulheres possam reproduzir machismo e oprimir de varias formas outras mulheres, não é este o tópico). Estes corpos podem ser observados como se estivesse expostos em vitrines e até mesmo, tocados (sem esquecer, claro das “poesias” verbalizadas). Tudo isso, independente da vontade da pessoa, afinal, se ela não obedeceu as regras, só pode “estar querendo", não é mesmo? (nunca é demais indicar o grau de ironia desta última frase).
Saber sobre essa tutela, intelectualmente, para mim já seria algo impactante, mas sendo e crescendo trans, senti seus efeitos em nível pessoal…
Lembro vagamente, ao longo da adolescência, de alguns episódios de invasão - esta tal tutela - quando meu corpo foi lido como “feminino”, geralmente em transportes públicos.
Mas me lembro muito bem de ocasião em que, indo na padaria, bem cedo em fim de semana, um automóvel cheio de rapazes barulhentos, buzinou, reduziu a velocidade para me acompanhar. E eles “mexeram” comigo, bem no estilo “se está de shortinho, está pedindo”…
Em tempos mais recentes, no Metrô do RJ, em um momento que combinava o movimento intenso de hora do rush, aumentado pelo público dos Jogos Olímpicos, literalmente alguém “encheu a mão” nas minhas nádegas, protegido pela multidão (e provavelmente nem tendo me visto inteiramente).
Cabe dizer que me visto de forma relativamente neutra (alguns diriam 'unissex') no cotidiano, mas as peças não são compradas em apenas um departamento das lojas. Assim, não é incomum o ocasional olhar “confuso”, embora no geral, ninguém ligue (ou reaja), o que seria o correto: admire(-se), mas não agrida, invada nem toque, sem explicita autorização .
Outro caso recente, há poucos dias, foi na portaria do meu prédio. Estava aguardando alguém vir buscar livros que estava doando, e resolvi descer e já ficar à postos lá embaixo. Entre a portaria e a grade externa há um banco, onde me sentei com os livros. Estava de short, cruzei as pernas e fiquei orientando a pessoa pelo celular. Daqui a pouco percebi alguém passando, parando mais adiante, quase no fim do meu campo de visão. Levantei os olhos, nem tanto a cabeça mas deu pra ver que era um homem e que estava olhando fixamente para minhas pernas. Assim que ele viu meu movimento, se virou e saiu andando novamente…
O assalto ao meu corpo no Metrô foi algo fortuito. O olhar insistente na portaria de casa, também, pois minha leitura social em geral não é de mulher. Infelizmente para todas as mulheres e pessoas femininas / transfemininas, estes são acontecimentos diários!
Esta tutela social/patriarcal sobre corpos de (maior) parte da população não faz sentido algum em nossos tempos. Deveríamos ensinar as nossas crianças - e lembrar umas as outras - que não é direito de ninguém ter domínio ou censura sobre corpos alheios apenas por pertencerem a um gênero ou ser certo tipo de pessoa. E que não, o comportamento desses corpos, não diz nada sobre o caráter dessas pessoas.
Dica para dialogar sobre estes comportamentos: se for permissível a algum gênero mas condenável para outro(s), algo está errado.
Os mamilos (polêmicos) são bom exemplo, e este post de Samantha Oliver ilustra bem a questão, e os pesos e medidas diferentes. Sammy não deixa dúvidas em seu blog e redes sociais: denomina-se “Homem Feminino", e ainda assim teve foto com mamilos à mostra censuradas, por ser considerada foto de uma mulher e portanto, mamilos = provocação sexual.